“Dois amores erigiram duas cidades, Babilônia e Jerusalém : aquela é o amor de si até ao desprezo de Deus ; esta, o amor de Deus até ao desprezo de si”.
Santo Agostinho, A Cidade de Deus,
2, L. XIV, XXVII
“Dois amores fazem duas cidades”, diz Santo
Agostinho. O próprio doutor descreve os dois princípios constitutivos das duas
cidades: “São dois os amores, diz ele, em que um é puro, e o outro impuro; um
junta, e o outro espalha; um quer o bem comum em vistas da sociedade celeste, e
o outro se vale do bem comum e submete-o a seu domínio por orgulho e
prevalência; um submete-se a Deus, e o outro Lhe tem inveja; um é tranqüilo, e
o outro turbulento; um é pacífico, e o outro sedicioso; um prefere a verdade
aos louvores dos palradores, e o outro é ávido de louvores, quaisquer sejam
suas fontes; um deseja ao próximo o bem que para si deseja, e o outro deseja
submeter o próximo; um governa os homens para o bem do próximo, e o outro para
seu proveito; esses dois amores, de que já se imbuíam os anjos, um nos bons, e
o outro nos maus, esses dois amores erigiram duas cidades por entre os homens”
Santo Agostinho nos fala sobre as duas
cidades: a de Deus e a do homem. Na de Deus fundada sobre o amor a Deus levado
ao desprezo de si próprio, e a dos homens, fundada sobre o amor-próprio levado
ao desprezo de Deus. Essas cidades foram fundadas no livro do Gênesis por Caim
e Abel. Caim criando uma cidade na Terra, e Abel, que não criou nenhuma cidade
na Terra mas fundou a celeste. Para Santo Agostinho, a primeira cidade está
destinada a sofrer a pena eterna com o Diabo e a segunda a reinar eternamente
com Deus . Temos então dois personagens: o cidadão do mundo e o peregrino do
céu. Encontramos portanto na cidade terrena duas formas: uma que ostenta sua
presença, outra que é com a sua presença, imagem da cidade celeste. A natureza
pervertida pelo pecado gera os cidadãos da cidade terrestre, e a graça, que
liberta do pecado, gera os cidadãos da cidade celeste. Nesse ponto podemos
fazer a união entre os dois maiores teólogos da Cristandade: Santo Agostinho e
São Tomás de Aquino. São Tomás pergunta se sem a graça pode o homem querer e
fazer o bem. Ele responde que o pecado não corrompeu totalmente a natureza
humana a ponto de privá-la de todo o bem que lhe é natural. Mas para realizar
uma obra meritória de caráter sobrenatural é necessário o auxílio da Graça.
Santo Agostinho dirá: “sem a Graça ninguém pode absolutamente fazer o bem: seja
pensando querendo, amando ou agindo”. Ele também dirá a respeito se a Graça
acrescenta algo à alma:” onde disse que a Graça consistia na remissão dos
pecados, e a paz na reconciliação com Deus; não se deve entender que a paz e a
reconciliação não fazem parte da Graça, no sentido geral do termo mas que,
tomado num sentido especial, este termo graça designa a remissão dos pecados”.
São Tomás diz que a Graça é maior em uma pessoa do que em outra, mas isso não
nos deve deixar tristes ou com sentimentos de inveja, pois nesse ponto há
desigualdade. Porque Deus dispensa os dons de sua Graça de diversas maneiras,
porque Ele estabeleceu os diversos graus das coisas para a perfeição do universo.
O cidadão da cidade Celeste questiona se a graça é a mesma coisa que virtude.
Santo Agostinho diz que “a graça que opera, é a fé que opera pelo amor”. Logo a
Graça seria uma virtude. Mas Santo Agostinho também diz que “a Graça é anterior
à caridade”. Portanto a Graça não é uma virtude. Como resolver essa questão?
Aristóteles diz que “ a virtude é uma disposição do que é perfeito, e o
perfeito é o que está disposto segundo a natureza”. São Tomás explica que como
a luz da razão é distinta das virtudes adquiridas, a luz da Graça é uma
participação à natureza divina e é distinta das virtudes infusas que derivam
desta luz e lhe são ordenadas. São Tomás não identifica a Graça com a virtude.
Em um capítulo da sua obra a cidade de Deus, Santo Agostinho escreve sobre a
graça de Deus e seus efeitos, e mostra como pelo pecado de um só homem caímos
em tão deplorável miséria, assim como pela Graça de um só Homem que é ao mesmo
tempo Deus, chegamos à posse de nosso soberano bem. A vida é uma batalha, mas
Santo Agostinho diz ao cidadão da cidade celeste que é melhor a guerra com a
esperança da vida eterna do que o cativeiro sem esperança de liberdade.
Santo
Agostinho faz uma longa defesa da fé cristã diante dos ataques vindos do
paganismo da época, que culpava o cristianismo pela decadência do império
romano( tese falsa que seria adotada pelo historiador Edward Gibbon). Santo
Agostinho descreve a incrível multidão de deuses que os romanos acreditavam e
demonstra a irracionalidade de seus cultos.
O livro é
muito rico em discussões, como, por exemplo, o valor do sofrimento no qual quem
sabe sofrer reza e agradece a Deus, enquanto o desesperado protesta e blasfema.
Santo Agostinho diz que no sofrimento Deus revela a força de sua piedade.
A influência
platônica em Santo Agostinho é bem conhecida. Na Cidade de Deus ele confessa
que o platonismo é a filosofia que mais se aproxima da fé cristã. Platão
estabeleceu que o fim do bem é viver de acordo com a virtude, o que pode
conseguir apenas quem conhece e imita a Deus, e que essa é a única fonte de sua
felicidade. Santo Agostinho quer que o filósofo tenha amor a Deus, porque gozar
de Deus e amar a Deus é ser feliz.
Citando o
maravilhoso filósofo neoplatônico Plotino, Santo Agostinho dirá que a morte
corporal é uma dádiva que Deus deu aos homens, porque não quis prendê-los para
sempre às misérias desta vida. Plotino diz que Deus é o Sol e a alma é a Lua, e
que a alma intelectual não reconhece como natureza superior à sua senão a de
Deus, autor do mundo e seu autor.
Para os espíritos
amolecidos e românticos de algumas pessoas hoje em dia, algumas palavras de
Santo Agostinho podem chocar. Diz ele: “quando elevamos nossa alma ao céu, o
coração é seu altar; imolamos-lhe vítimas sangrentas quando combatemos até o
derramamento de nosso sangue por sua verdade”. Ou seja, é necessário às vezes
pegar em armas para defender a fé cristã.
A obra de
Santo Agostinho trata da história da salvação desde a Antiguidade até o tempo
de Cristo e sua Ressurreição, passando pelos romanos e pelos judeus. O estilo
de escrita de Santo Agostinho é muito belo, e citações de passagens suas por
outros filósofos desde São Tomás até Wittgenstein ( que baseou suas
Investigações Filosóficas em uma passagem das Confissões) e Eric Voegelin são
abundantes.
Podemos fazer
uma meditação sobre o que diz uma passagem da Cidade de Deus no capítulo XII do
sétimo livro. O título desse capítulo é A Júpiter dá-se também o nome de Pecúnia. Aqui vai o
rápido comentário do Santo: ” Em relação a tudo
quanto se contém no céu e na Terra, que é o dinheiro entre as coisas
que, com o nome de dinheiro, os homens possuem? Na realidade, foi a avareza que
impôs semelhante nome a Júpiter, como o propósito de que a todo aquele que ama
o dinheiro não lhe parecesse amar qualquer deus, mas o rei de todos os deuses.
Não seria assim se lhe chamássemos de Riqueza. Uma coisa são as riquezas;
outra, o dinheiro. Chamamos ricos,sábios, justos e bons a quem carece de
dinheiro ou tem pouco.São ricos em virtude que lhes ensinam a contentar-se com
o que têm, quando se veem em falta de bens temporais. E damos o nome de pobres
aos avaros, sempre anelantes e sempre em necessidade, porque é possível que
tenham as maiores riquezas do mundo, mas, por muito grande que seja o seu
patrimônio, não podem não estar necessitados (…) em que o rei dos deuses tomou
o nome da coisa que jamais sábio algum
desejou? com que facilidade, se salutarmente aprendessem algo da ciência da
vida eterna, chamariam Deus ao regedor desse mundo, não por causa do dinheiro,
mas por causa da sabedoria, cujo amor purifica da imunda cobiça, ou seja, do
amor ao dinheiro!”
Lendo essa
passagem vemos como é impossível conciliarmos o Cristianismo tanto com o
liberalismo econômico quanto com o socialismo. O Cristianismo pretende nos
fazer sábios e ricos espiritualmente, enquanto essas doutrinas modernas visam
aumentar o lucro e a cobiça do ser humano, pois nenhuma das duas conseguem pôr
freio às ambições de dinheiro e bens que seus seguidores possuem. Não podemos
servir a Deus e às riquezas ao mesmo tempo. Então, pode o homem ser feliz mesmo
sabendo da sua mortalidade? É possível uma felicidade como à de Aristóteles,
que acreditava que o homem pode ser feliz na prática da contemplação? Santo
Agostinho responde no capítulo XIV do nono livro: ” Os homens discutem grande
problema: Pode o homem ser feliz e mortal? Alguns, considerando-lhe com
humanidade a condição, negam ao homem a possibilidade de ser feliz, enquanto
viver para morrer. Outros, exaltando-se a si mesmos, atreveram-se a dizer que o
sábio, embora mortal, pode alcançar a felicidade. Se é assim, por que não
elevá-lo, antes, à categoria de mediador entre os mortais infelizes e os
bem-aventurados imortais, se com estes partilham a felicidade e com aqueles a
mortalidade? É fora de dúvida que, se felizes, não invejam ninguém, porque nada
existe mais miserável que a inveja. E, portanto, velam quanto podem pelos
miseráveis mortais, para que consigam a felicidade e possam também, depois da
morte, ser imortais em companhia do anjos e dos bem- aventurados imortais.”
Quem é esse
mediador que livrará o homem da infelicidade de ser mortal? Santo Agostinho
responde: É Jesus Cristo, ” que é homem, mas também Deus, que por intervenção
de bem-aventurada mortalidade conduz os homens da miséria mortal à imortalidade
feliz.” É Cristo, diz Agostinho, que nos prepara o caminho, e não outros
mediadores que nos façam subir por degraus, porque Deus nos associa à sua
beatitude pelo caminho mais curto. O fim do homem será definido por um filósofo
cristão posterior a Santo Agostinho, que foi Boécio, o qual disse a respeito da
eternidade:”interminabilis vitae tota simul et perfecta possessio” ( a
eternidade é a possessão simultânea de uma vida interminável completa e
perfeita )
Fontes
http://permanencia.org.br/drupal/node/554
http://felipepimenta.com/2013/03/11/resenha-de-a-cidade-de-deus-de-santo-agostinho/
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