Artigo do filósofo Immanuel Kant
(Königsberg, Prússia, 30 de setembro de 1784). Tradução de Luiz Paulo Rouanet,
professor da PUC-Campinas.
Esclarecimento (Aufklärung) significa a saída do homem de sua
menoridade, pela qual ele próprio é responsável. A menoridade é a incapacidade
de servir-se de seu próprio entendimento sem a tutela de outro. É a si próprio
que deve-se atribuir essa menoridade, uma vez que ela não resulta da falta de
entendimento, mas da falta de resolução e de coragem necessárias para utilizar
seu entendimento sem a tutela de outro. Sapere aude²! Tenha a coragem de te
servir de teu próprio entendimento! Tal é portanto a divisa do Esclarecimento.
A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma parte tão grande dos
homens, libertos há muito pela natureza de toda tutela alheia (naturaliter
majorennes), comprazem-se em permanecer por toda vida menores; e é por isso que
é tão fácil a outros instituírem-se seus tutores. É tão cômodo ser menor! Se
possuo um livro que possui entendimento por mim, um diretor espiritual que
possui consciência em meu lugar, um médico que decida acerca de meu regime,
etc., não preciso eu mesmo esforçar-me. Não sou obrigado a refletir, se é
suficiente pagar; outros se encarregarão por mim da aborrecida tarefa.
Que a
maior parte da humanidade (e especialmente todo o belo sexo) considere o passo
a dar para ter acesso à maioridade como sendo não só penoso, como ainda
perigoso, é ao que se aplicam esses tutores que tiveram a extrema bondade de
encarregar-se de sua direção. Após ter começado a emburrecer seus animais
domésticos e cuidadosamente impedir que essas criaturas tranquilas sejam
autorizadas a arriscar o menor passo sem o andador que as sustenta,
mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentam andar sozinhas. Ora,
esse perigo não é tão grande assim, pois após algumas quedas elas acabariam
aprendendo a andar; mas um exemplo desse tipo intimida e dissuade usualmente
toda tentativa ulterior. É, portanto, difícil para todo homem tomado
individualmente livrar-se dessa menoridade que se tornou uma espécie de segunda
natureza. Ele se apegou a ela, e é então realmente incapaz de se servir de seu
entendimento, pois não deixam que ele o experimente jamais. Preceitos e
fórmulas, esses instrumentos mecânicos destinados ao uso racional, ou antes ao
mau uso de seus dons naturais, são os entraves desses estado de menoridade que
se perpetua. Quem o rejeitasse, no entanto, não efetuaria mais do que um salto
incerto por cima do fosso mais estreito que seja, pois ele não tem o hábito de
uma tal liberdade de movimento. Assim, são poucos os que conseguiram, pelo
exercitar de seu próprio espírito, libertar-se dessa menoridade tendo ao mesmo
tempo um andar seguro.
Que um
público, porém, esclareça-se a si mesmo, é ainda assim possível; é até, se lhe
deixarem a liberdade, praticamente inevitável. Pois então sempre se encontrarão
alguns homens pensando por si mesmos, incluindo os tutores oficiais da grande
maioria, que, após terem eles mesmos rejeitado o jugo da menoridade, difundirão
o espírito de uma apreciação razoável de seu próprio valor e a vocação de cada
homem de pensar por si mesmo. O que há de especial nesse caso é que o público,
que outrora eles haviam submetido, os forçará então a permanecer nesse estado,
por pouco que eles sejam pressionados pelas iniciativas de alguns de seus
tutores totalmente inaptos ao Esclarecimento. O que prova a que ponto é nocivo
inculcar preconceitos, pois eles acabam vingando-se de seus autores ou dos
predecessores destes. É por esse motivo que um público só pode aceder
lentamente ao Esclarecimento. Uma revolução poderá talvez causar a queda do
despotismo pessoal ou de uma opressão cúpida e ambiciosa, mas não estará jamais
na origem de uma verdadeira reforma da maneira de pensar; novos preconceitos
servirão, assim como os antigos, de rédeas ao maior número, incapaz de
refletir.
Esse
Esclarecimento não exige, todavia, nada mais do que a liberdade; e mesmo a mais
inofensiva de todas as liberdades, isto é, a de fazer um uso público de sua
razão em todos os domínios. Mas ouço clamar de todas as partes: não raciocinai!
O oficial diz: não raciocinai, mas fazei o exercício! O conselheiro de
finanças: não raciocinai, mas pagai! O padre: não raciocinai, mas crede! (Só
existe um senhor no mundo que diz: raciocinai o quanto quiserdes, e sobre o que
quiserdes, mas obedecei!). Em toda parte só se vê limitação da liberdade. Mas
que limitação constitui obstáculo ao Esclarecimento, e qual não constitui ou
lhe é mesmo favorável? Respondo: o uso público de nossa razão deve a todo
momento ser livre, e somente ele pode difundir o Esclarecimento entre os
homens. O uso privado da razão, por sua vez, deve com bastante frequência ser
estreitamente limitado, sem que isso constitua um entrave particular o
progresso do Esclarecimento. Mas entendo por uso público de nossa razão o que
fazemos enquanto sábios para o conjunto do público que lê.
Denomino
de uso privado aquele que se é autorizado a fazer de sua razão em um certo posto
civil ou em uma função da qual somos encarregados. Ora, muitas tarefas que
concorrem ao interesse da coletividade (gemeinem Wesens) necessitam de um certo
mecanismo, obrigando certos elementos da comunidade a se comportar
passivamente, a fim de que, graças a uma unanimidade artificial, sejam
dirigidos pelo governo a fins públicos, ou pelo menos impedidos de destruí-los.
Nesse caso, com certeza, não é permitido argumentar (räsonieren). Deve-se
somente obedecer. Dado que essa parte da máquina, no entanto, se concebe como
elemento do bem público como um todo, e mesmo da sociedade civil universal,
assume por conseguinte a qualidade de um erudito que se dirige a um só público,
no sentido próprio do termo, por meio de escritos, ele pode então raciocinar
sem que as tarefas às quais ele está ligado como elemento passivo sejam
afetadas. Desse modo, seria muito nocivo que um oficial, tendo recebido uma
ordem de seus superiores, ponha-se durante seu serviço a raciocinar em voz alta
sobre a conveniência ou utilidade dessa ordem; ele só pode obedecer. Mas não se
pode com justiça proibir-lhe, enquanto especialista, de fazer observações sobre
as faltas cometidas durante o período de guerra, e submetê-las ao julgamento de
seu público.
O
cidadão não pode recusar-se a pagar os impostos que lhe são exigidos; a crítica
insolente de tais impostos no momento em que ele tem a obrigação de pagá-los
pode até ser punida como um escândalo (que poderia provocar rebeliões gerais).
Mas não está em contradição com seu dever de cidadão se, enquanto erudito, ele
manifesta publicamente sua oposição a tais imposições inoportunas ou mesmo
injustas. Do mesmo modo, um padre está obrigado diante de seus catecúmenos e
sua paróquia a fazer seu sermão de acordo com o símbolo da Igreja à qual ele
serve; pois ele foi empregado sob essa condição. Mas, enquanto erudito, ele
dispõe de liberdade total, e mesmo da vocação para tanto, de partilhar com o
público todas suas ideias minuciosamente examinadas e bem intencionadas que
tratam das falhas desse simbolismo e de projetos visando a uma melhor abordagem
da religião e da Igreja. Não há nada aí que seja contrário à sua consciência.
Pois o que ele ensina em virtude de sua função enquanto dignitário da Igreja,
ele o expõe como algo que ele não pode ensinar como quiser, mas que é obrigado
a expor segundo a regra e em nome de uma outra.
Ele
dirá: nossa Igreja ensina isto ou aquilo; eis as provas das quais ela se serve.
Ele extrairá em seguida todas as vantagens práticas, para sua paróquia, dos
preceitos os quais, por sua parte, ele não subscreve com convicção total, mas
que ele expõe de modo sólido, pois não é impossível que haja neles uma verdade
oculta, e em todo caso, nada há ali que contradiga a religião interior. Pois,
se ele julgasse encontrar tal coisa, não poderia em consciência exercer sua
função; deveria demitir-se. O uso, portanto, que um pastor em função faz de sua
razão diante de sua paróquia é apenas um uso privado; pois esta é uma
assembleia de tipo familiar, qualquer que seja sua dimensão; e, levando isso em
conta, ele não é livre enquanto padre e não tem o direito de sê-lo, pois ele
executa uma missão alheia à sua pessoa. Em contrapartida, enquanto erudito que,
por meio de seus escritos, fala ao verdadeiro público, isto é, ao mundo, por
conseguinte no uso público de sua razão, o padre desfruta de uma liberdade
ilimitada de servir-se de sua própria razão e de falar em seu próprio nome.
Pois, querer que os tutores do povo (nas coisas eclesiásticas) voltem a ser
menores, é um absurdo que contribui para a perpetuação dos absurdos.
Entretanto,
uma sociedade de eclesiásticos, um sínodo, por exemplo, ou uma classe (como são
chamados entre os holandeses), não deveriam ter o direito de comprometer-se
mutuamente por juramento sobre um certo símbolo imutável, para assim manter sob
tutela superior permanente cada um de seus membros e, graças a eles, o povo, e
desse modo perenizar tal tutela? Digo que é absolutamente impossível. Tal
contrato, concluído para proibir para sempre toda extensão do Esclarecimento ao
gênero humano, é completamente nulo e para todos os efeitos não ocorrido,
tivesse sido implementado mesmo pelo poder supremo, pelas Dietas do Império e
pelos mais solenes tratados de paz. Uma época não pode se aliar e conspirar
para tornar a seguinte incapaz de estender seus conhecimentos (sobretudo tão
urgentes), de libertar-se de seus erros e finalmente fazer progredir o
Esclarecimento. Seria um crime contra a natureza humana, cuja vocação original
reside nesse progresso; e os descendentes terão pleno direito de rejeitar essas
decisões tomadas de maneira ilegítima e criminosa.
A pedra
de toque de tudo o que pode ser decidido sob forma de lei para um povo se
encontra na questão: um povo imporia a si mesmo uma tal lei? Ora, esta seria
possível, por assim dizer, na espera de uma melhor, e por um breve e
determinado período, a fim de introduzir uma certa ordem; sob condição de
autorizar ao mesmo tempo cada um dos cidadãos, principalmente o padre, em sua
qualidade de erudito, a fazer publicamente, isto é, por escrito, suas
observações sobre os defeitos da antiga instituição, sendo enquanto isso
mantida a ordem introduzida. E isso até que a compreensão de tais coisas esteja
publicamente tão avançada e confirmada a ponto de, reunindo as vozes de seus
defensores (nem todos, com certeza), trazer diante do trono um projeto:
proteger as paróquias que se julgassem a respeito de uma instituição da
religião modificadas segundo suas concepções, sem prejudicar contudo aquelas
que quisessem manter-se na situação antiga. Mas é simplesmente proibido
acordar-se sobre uma constituição religiosa imutável, a não ser contestada
publicamente por ninguém, mesmo que fosse o tempo de duração de uma vida, e
anular literalmente, desse modo, todo um período da marcha da humanidade em
direção à sua melhoria, e torná-la não só estéril, mas ainda prejudicial à
posteridade. Um homem pode, a rigor, pessoalmente e, mesmo então, somente por
algum tempo, retardar o Esclarecimento em relação ao que ele tem a obrigação de
saber; mas renunciar a ele, seja em caráter pessoal, seja ainda mais para a
posteridade, significa lesar os direitos sagrados da humanidade, e pisar-lhe em
cima.
Mas o
que um povo não é sequer autorizado a decidir por si mesmo, um monarca tem
ainda menos o direito de decidir pelo povo; pois sua autoridade legislativa
repousa precisamente sobre o fato de que ele reúne toda a vontade popular na
sua. Se ele propõe apenas conciliar toda verdadeira ou pretensa melhoria com a
ordem civil, ele só pode, por outro lado, deixar a cargo de seus súditos o que
eles estimam necessário para a salvação de sua alma; isto não lhe diz respeito.
Em contrapartida, ele deve velar para que ninguém impeça a outro pela violência
de trabalhar com todas suas forças para a definição e promoção de sua salvação.
Ele prejudica à sua própria majestade quando intervém nesses assuntos, como se
concernissem à autoridade do governo os escritos nos quais seus súditos tentam
esclarecer sua ideia, ou quando age por sua própria vontade e se expõe à
censura de Caesar non est supra Grammaticos3 . É também, e mais ainda, o caso
quando ele rebaixa seu poder supremo defendendo contra o resto de seus súditos
o despotismo eclesiástico de alguns tiranos em seu Estado.
Quando
se pergunta, portanto: vivemos atualmente numa época esclarecida? A resposta é:
não, mas numa época de Esclarecimento. Muito falta ainda para que os homens, no
estado atual das coisas, tomados conjuntamente, estejam já num ponto em que
possam estar em condições de se servir, em matéria de religião, com segurança e
êxito, de seu próprio entendimento sem a tutela de outrem. Mas que, desde já, o
campo lhes esteja aberto para mover-se livremente, e que os obstáculos à
generalização do Esclarecimento e à saída da menoridade que lhes é
auto-imputável sejam cada vez menos numerosos, é o que temos signos evidentes
para crer. A esse respeito, é a época do Esclarecimento, ou o século de
Frederico II, o Grande [rei da Prússia]. Um príncipe que não julga indigno de
si mesmo que ele considere como um dever nada prescrever aos homens em matéria
de religião, que lhes deixa sobre esse ponto uma liberdade total, e recusa, no
que lhe diz respeito, o orgulhoso termo de tolerância, é ele mesmo esclarecido,
e por ter sido o primeiro a libertar o gênero humano de sua menoridade, pelo
menos no que concernia ao governo, e por ter deixado a cada um livre de se
servir de sua própria razão em todas as questões de consciência, merece ser
louvado pelo mundo que lhe é contemporâneo, e pelo futuro agradecido. Sob seu
reinado, honoráveis eclesiásticos, a despeito de seu dever de função, têm a
permissão, em qualidade de eruditos, de apresentar-se livre e publicamente ao
exame de todos os juízos e pontos de vista que se afastam aqui ou ali dos
símbolos adotados. Melhor ainda, esse direito é concedido a todos que não se
encontram limitados por seu dever de função. Esse espírito de liberdade
estende-se também ao exterior, mesmo onde deve lutar com os obstáculos externos
de um governo que ignora sua verdadeira missão. Pois mostra a este, por seu
exemplo brilhante, que ali onde reina a liberdade nada há a temer para a
tranquilidade pública e unidade do Estado. Os homens procuram libertar-se de
sua grosseria, por pouco que não se esforcem para mantê-los artificialmente em
tal condição.
Situei
o alvo principal do Esclarecimento, a saída do homem da menoridade da qual ele
próprio é culpado, principalmente no domínio da religião: pois, em relação às
ciências e às artes, nossos soberanos não se interessaram em desempenhar o
papel de tutores de seus súditos. Além disso, essa menoridade à qual me referi,
além de ser a mais nociva, é também a mais desonrosa. Mas a reflexão de um
chefe de Estado que favorece o Esclarecimento vai mais longe e vê bem que,
mesmo a respeito da legislação, não há perigo em autorizar seus súditos a fazer
publicamente uso de sua própria razão, e em expor ao mundo suas ideias sobre
uma melhor redação das leis, mesmo que seja com ajuda de uma crítica franca das
já existentes; é disso que temos um exemplo brilhante, que nenhum outro monarca
a não ser aquele que veneramos forneceu ainda. Mas somente aquele que, além
disso, ele mesmo esclarecido, não teme as trevas, mas ao mesmo tempo tendo sob
o comando um exército numeroso e bem disciplinado, garantia da tranquilidade
pública, pode dizer o que um Estado livre não ousa dizer: raciocinai o quanto
quiserdes, e sobre o que desejardes, mas obedecei! Revela-se assim uma marcha
estranha, inesperada das coisas humanas; de todo modo, aqui como em todo lugar,
quando se considera globalmente, quase tudo o que há nisso é paradoxal. Um grau
mais elevado de liberdade civil parece ser vantajoso para a liberdade de
espírito do povo, e lhe impõe todavia barreiras intransponíveis; um grau menos
elevado daquela proporciona a este, em contrapartida, a possibilidade de estender-se
de acordo com suas forças. Quando, portanto, a natureza libertou de seu duro
envoltório o germe sobre o qual ela vela mais ternamente, isto é, a inclinação
e a vocação para pensar livremente, então essa inclinação age por sua vez sobre
a sensibilidade do povo (graças à qual este se torna cada vez mais capaz de ter
a liberdade de agir) e, finalmente, também sobre os princípios do governo, que
encontra o seu próprio interesse em tratar o homem, que doravante é mais do que
uma máquina, na medida de sua dignidade.
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