Foram três sonhos seguidos, grandiosos e apavorantes.
Anunciavam eles, em meio a fantasmas, tempestades e ventanias, que o jovem soldado René Descartes, o futuro filósofo, apesar da guerra em que se envolvera, tinha um destino luminoso a sua frente. Confessou ele bem mais tarde que devido àquelas espantosas jornadas oníricas "acendeu-me a luz de uma inteligência maravilhosa!". Meticuloso, chegou até a registrar com precisão em que os devaneios noturnos ocorreram: exatamente na noite do dia 10 para o 11 de novembro de 1619, quando ele ainda não completara a idade de 23 anos.
A
paisagem da cidade de Ulm, no Sul da Alemanha, devia ser belíssima em 1619. Um bosque imenso de abetos, faias e carvalhos
ladeavam as fortificações da cidade e se estendia até os Alpes Bávaros
escondendo em sua mata lobos e corujas.
A
torre da Catedral dominava o conglomerado de casas de tetos agudos, dispostas à
margem do Danúbio.
Em uma
dessas casas, em uma manhã de novembro, René Descartes se aquecia ao pé de uma
lareira. Aquecia-se e meditava, na vaga incerteza daquela manha de inverno
oscilando entre o pensamento consciente e visões que lhe pareciam pesadelos.
Desde a
adolescência havia estudado com devoção o Evangelho, as Ciências, os poetas
clássicos e a Filosofia. Havia decidido abandonar sua cidade natal para
"conhecer o livro do mundo".
Durante
anos vinha-se atormentando com turbilhões de dúvidas e reflexões à procura de
algo que fosse a um tempo fundamento e esperança de sua vida. Buscava o
elemento que justificasse suas peregrinações pelos diversos campos do
conhecimento humano.
Naquele
dia ele fitava aturdido, ora o céu cinza através da janela, ora as faíscas na
lareira, enquanto os fantasmas de sua mente o torturavam com perguntas
inexoráveis, "Quem sou eu?", "O que posso saber?" "O que posso esperar?". No silêncio
daquela sala o desconforto chegou a ser tamanho que Descartes duvidou até da
própria existência. Quem podia assegurar que ele era real, que ele e a lareira
não eram fruto da imaginação de algum outro ser? Quase a ponto de desmaiar
Descartes rezou e implorou por um momento de clareza. Não sabemos se suas
preces foram ouvidas, mas sabemos que, aos poucos, entre os clarões da lareira,
Descartes foi divisando uma límpida certeza. Tudo podia ser um sonho a sala, a
lareira, menos sua angustiante cogitação. As suas dúvidas eram a prova de sua
existência.
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Descartes desfrutando da lareira |
"Cogito ergo sum"
Cogitar
descreve o árduo processo de remoer, arrumar os dados confusamente espalhados em
nossas mentes para, finalmente, se logramos sintetizar o resultado de nossas
cogitações, chegar ao pensamento.
Responsável
pelo processo de cogitar é a ratio, ou razão, e Descartes a colocou como
ferramenta essencial para atingir o conhecimento.
Através
do uso certo da razão, Descartes intuiu a possibilidade de encontrar um método
e uma linguagem que unificassem todas as áreas do conhecimento humano.
Dezoito
anos após aquela decisiva manhã de novembro, Descartes reunia os frutos de suas
reflexões no célebre "Discurso sobre o Método de bem Conduzir a Razão na
Busca da Verdade nas Ciências".
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